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uma caixinha de lembranças aberta em um blog de histórias: leia as curtas, os esquetes, de uma só vez ou o começo, o meio e o fim

A menina que lia placas – Fim julho 15, 2009

Filed under: Fim — Denize Guedes @ 12:23 am
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mobile(leia o começo, o meio 1 e o meio 2)

– Você está muito bonita – disse Bernardo, encostado junto à porta, mãos no bolso da calça jeans, fazendo rugas na camisa de malha verde que caía sobre o quadril.

– É mesmo? Obrigada. Escolhi uma roupa que estava assim mais à mão – disse estendendo a cortina de musseline como se examinasse alguma coisa, olhando-o por sobre o ombro esquerdo. – Você também não está nada mal.

– Obrigado, estou fazendo natação de segunda e quarta. Fui hoje cedo.

– É? Bem que se sente um perfume gostoso de banho – sorrindo.

Nesta hora, o ajudante deu falta de uma broca para a furadeira e desceu para buscá-la na van da empresa.

– Soube que você se casou – Clara foi logo dizendo, sentia-se com vontade de espreguiçar, talvez como as borboletas quando estão prontas.

– É verdade. Faz uns meses.

– Natália, ouvi dizer – finalmente o encarando e deixando a cortina de lado, esparramada em azul no chão.

– É, Natália, a minha menina – falou, como quem joga uma pedra do alto da ponte e espera o barulho de contato contra a água.

– Porque você não me chama mais de menina?

– Ah, vamos, Clara. Você sabe.

– Não, não sei, não. Você vai ter de me explicar.

– Você sabe, sabe muito bem. Soube quando aceitou aquele papo furado de ser minha amiga – caminhando irritado pelo quarto até encontrar uma edição de “O pequeno príncipe”, que começou a folhear desinteressado.

Clara desconfiava. Uma noite, os dois haviam saído para tomar café e Bernardo, depois de observar longamente as ranhuras do cinzeiro branco sobre a mesa, tomou ar e repetiu a pergunta de outro dia que fizera para uma Clara meio adormecida em seus braços. “O que a gente é?” Ele não tinha como saber que ela fitava uma placa de “proibido estacionar” do outro lado da calçada e que, por isso, simplesmente devolveu a pergunta sem opinar. Ela também não tinha como saber que Bernardo ficava completamente inseguro em sua presença, não conseguia ter certeza de nada sobre ela, se gostava mesmo dele ou não, se queria algo sério com ele ou não, se o usava para sentir-se livre ou não. De longe, era a mais difícil de ler dentre todas as meninas que havia conhecido. No entanto, era a que mais adorava, acho que até hoje. Então, sem saber que carta jogar, resolveu blefar e respondeu que achava que deviam ser amigos, apenas bons amigos.  

– Papo furado? Eu achei que estivesse falando sério – Clara avançou em sua direção, fechando o livro de suas mãos, ruga no centro da testa.

– Que tipo de amigo fazia as coisas que a gente fazia, Clara? Que tipo? Pelo amor de Deus! – virando-se para sair do quarto.

– Espere um pouco – encarando-o de perto depois de puxá-lo pelo braço. – Eu achei, eu achei, eu… – sem conseguir terminar de falar, lendo o que estava escrito naqueles olhos castanhos que não eram de amigo, eram de outra coisa. – Meu Deus, porque eu não vi isso antes? – meio sem ar.

– Por que não disse nada, Clara? Por que não se manifestou? Não contestou?  Não fez nada? Ficou quieta, sem dar nenhuma pista – ameaçando-a chacoalhar em um instante de fúria – Eu não precisava de mais nada ao seu lado. Com você eu tinha tudo.

– Eu não achava que soubesse, não ali naquela hora – disse para um Bernardo que virava de costas sem forças. – Mas depois eu fui atrás de você para falar, lembra? Eu fui, Bernardo. Aí, você já estava com essa tal de Natália.

– Não fale assim dela.

– Essa tal de Natália, sim. De viagem marcada para Bangcoc. Bangkok?! Levei um susto, fiquei sem voz. Mas sabe o que eu ia falar?

– É tarde, Clara – ainda de costas, levando as mãos à cabeça num gesto seco.

– Eu ia falar que queria tomar você como o meu homem. Queria deitar com você todas as noites e todas as manhãs, queria carregar os teus filhos, queria honrar o teu nome todos os dias dali em diante – finalmente recuperando os olhos castanhos de Bernardo nos seus que choravam.

Ficaram um tempo ali de pé. Ela observando um móbile que suspendiam gotas ao contrário. Ele com os olhos perdidos no chão, assobiando uma melodia bonita.

– Eu me sentia única quando você me chamava de menina, sabia? Às vezes, você me chamava de Nina, lembra? – rompendo a falta de palavras que começava a incomodar.

– Não tem como esquecer. É assim que chamo as mulheres que amo.

Clara olhou através da janela, encontrou um canto de céu claro naquele tempo que insistia em querer chover e reparou que há mesmo no mundo certos padrões.

Se isto fosse um curta, é esta a hora em que os letreiros sobem sobre uma imagem de proibido estacionar. O pé da placa informa: das 08h às 22h. Mas nem Clara tem como saber disto.
(a imagem é desta moça aqui)
 
 

 

 

2 Responses to “A menina que lia placas – Fim”

  1. Carlos Paulo Says:

    Denizinha, voce é mesmo uma boa contadora de história,
    minha cara!!!


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